A prática médica, especialmente em contextos de urgência e emergência, carrega consigo uma série de responsabilidades éticas e legais. Entre elas, destaca-se o dever de agir, que, em situações de omissão, pode levar à responsabilização penal do profissional. Este artigo explora a complexa relação entre o Direito Penal e a atuação dos médicos plantonistas, com base em um caso emblemático julgado pelo Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR) em abril de 2022.
O Caso do TJ-PR: Homicídio Culposo por Omissão
Em 2022, o TJ-PR analisou a conduta de um médico acusado de homicídio culposo por omissão, após deixar de atender um paciente em uma unidade de pronto-atendimento por três vezes consecutivas. O paciente veio a óbito, e o tribunal decidiu pela responsabilização criminal do réu, entendendo que a omissão do médico contribuiu diretamente para o desfecho fatal (TJ-PR, APCrim n. 0058533-59.2018.8.16.0014).
A defesa do médico apresentou argumentos relevantes, como a sobrecarga de trabalho, o fato de ser o único plantonista no local e a hostilidade dos familiares da vítima, que, segundo a defesa, representava um risco à integridade física do profissional. Contudo, o tribunal reconheceu que, embora essas condições fossem reais, elas não afastavam o dever de agir do médico.
O Dever de Agir e a Possibilidade de Ação
Um dos pontos centrais do julgamento foi a análise da possibilidade de ação do médico, elemento essencial para caracterizar um crime omissivo impróprio. O tribunal concluiu que, mesmo diante da sobrecarga de trabalho e da hostilidade dos familiares, o médico poderia ter prestado, ao menos, algum atendimento mínimo ao paciente. Segundo o acórdão:
> “A despeito do acusado ser o único médico plantonista no dia dos fatos, ocasião em que atendia outros pacientes em estado grave, está comprovado que este deixou de atender a vítima, mesmo tendo sido informado da piora do seu quadro clínico. […] Embora fosse o único no pronto-socorro, tinha obrigação de, ainda que minimamente, prestar algum atendimento, e não deixar a vítima à própria sorte.” |
---|
Essa decisão reforça que a pluralidade de pacientes e a sobrecarga de trabalho, embora sejam fatores que dificultam a atuação médica, não eximem o profissional de sua responsabilidade penal.
A Fronteira entre Direito Penal e Saúde
O caso analisado pelo TJ-PR ilustra um problema recorrente na prática médica: a sobrecarga de trabalho e a ausência de condições adequadas para o exercício da profissão. Essas condições, que já são conhecidas como parte do “chão de fábrica” dos profissionais de saúde, frequentemente colocam médicos em situações de risco, tanto para a sua integridade física quanto para a segurança jurídica de suas ações.
Embora o tribunal tenha reconhecido a sobrecarga enfrentada pelo médico, a decisão condenatória destacou que a inércia do profissional, mesmo após múltiplos chamados de sua equipe, foi determinante para o desfecho do caso. Essa postura, classificada como desinteresse pelo paciente, foi um dos principais fundamentos para a condenação.
O Papel do Médico na Gestão do Caos
Outro ponto levantado pelo tribunal foi a expectativa de que o médico deveria ter demonstrado uma postura diligente na gestão do caos do pronto-atendimento. Essa exigência, contudo, levanta questões dogmáticas importantes, já que a responsabilidade penal do médico deve estar limitada aos pressupostos legais e não pode incluir obrigações de gestão hospitalar, que extrapolam o escopo de sua atuação profissional.
Conforme destacado no acórdão, o médico poderia ter adotado algumas medidas para evitar o desfecho fatal, como monitorar periodicamente os sinais vitais do paciente, solicitar que ele fosse trazido para avaliação in loco ou priorizar seu atendimento assim que possível. No entanto, essas ações, embora recomendáveis, não são sempre claras ou objetivas, o que gera insegurança jurídica para os profissionais da saúde.
O Impacto da Sobrecarga de Trabalho na Responsabilidade Penal
A saturação dos hospitais e a sobrecarga de trabalho dos médicos plantonistas são fatores que potencializam a chance de erros e, consequentemente, a responsabilização penal. No entanto, o Código de Ética Médica (CEM) estabelece que o médico tem o direito de recusar-se a exercer sua profissão em condições que comprometam sua saúde ou a de seus pacientes. O artigo 4º do CEM dispõe:
> “É direito do médico recusar-se a exercer sua profissão em instituição pública ou privada onde as condições de trabalho não sejam dignas ou possam prejudicar a própria saúde ou a do paciente, bem como a dos demais profissionais.” |
---|
Ainda assim, o mesmo código veda ao médico deixar de atender em setores de urgência e emergência quando for de sua obrigação fazê-lo, reforçando o dilema ético e jurídico enfrentado por esses profissionais.
A Necessidade de Protocolos e Diretrizes Claras
Diante da complexidade e das implicações jurídicas da atuação médica em contextos de urgência, torna-se evidente a necessidade de protocolos claros que orientem os profissionais de saúde sobre como agir em situações de sobrecarga e caos. Esses protocolos devem considerar não apenas as disposições legais e éticas, mas também a realidade prática enfrentada pelos médicos no dia a dia.
A criação de diretrizes objetivas pode reduzir a insegurança jurídica e garantir que os profissionais tenham clareza sobre suas responsabilidades e limitações. Além disso, é fundamental que as instituições de saúde ofereçam condições adequadas de trabalho, evitando que a sobrecarga comprometa a qualidade do atendimento e exponha os médicos a riscos desnecessários.
Conclusão
O caso julgado pelo TJ-PR em 2022 evidencia os desafios enfrentados pelos médicos plantonistas em um sistema de saúde sobrecarregado. Embora a decisão condenatória tenha sido fundamentada na omissão do profissional, ela também levanta questões importantes sobre a relação entre Direito Penal e saúde, especialmente no que diz respeito à responsabilidade penal dos médicos em contextos de caos e sobrecarga.
É imprescindível que o debate sobre a responsabilidade penal dos médicos avance, considerando não apenas os aspectos legais, mas também as condições reais de trabalho desses profissionais. Somente assim será possível garantir um equilíbrio entre a proteção dos direitos dos pacientes e a segurança jurídica dos médicos, promovendo um ambiente mais justo e seguro para todos os envolvidos.
👉 Proteja sua carreira e seus pacientes com os melhores seguros do Brasil. Clique aqui e descubra como ajudamos médicos com segurança, previdência e tranquilidade!
Referências
- Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. APCrim n. 0058533-59.2018.8.16.0014. Des. Miguel Kfouri Neto, julgado em 28/04/2022. Disponível em: JusBrasil.
- Código de Ética Médica. Disponível em: Conselho Federal de Medicina.
- Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Geral. 24ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.
- Nucci, Guilherme de Souza. Princípios constitucionais penais e processuais penais. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.